O que realmente está em jogo na questão do aborto?
A questão do aborto é sem dúvida, uma das questões mais polêmicas dos nossos tempos. Tal como ocorre com outros assuntos controversos, muito se fala sobre o aborto, mas pouco se esclarece a respeito. Ademais, quando toca à participação de cristãos em debates sobre tais assuntos, muitos afirmam que cristãos não têm condições de opinar nesses casos, pois as suas opiniões se baseiam apenas na Bíblia ou na teologia cristã. Porém, o fato é que existem argumentos racionais e seculares disponíveis aos cristãos, com base nos quais eles podem criticar o aborto (na verdade, há argumentos desse tipo contra muitas outras questões polêmicas, tais como: ideologia de gênero, casamento gay, etc.). Argumentos desse gênero, apesar de não partirem diretamente do texto bíblico ou da teologia cristã, nem por isso as contradizem. Na verdade, a razão e a ciência confirmam e esclarecem o que já sabemos mediante a fé. No caso do aborto, existe toda uma argumentação baseada na ciência e na filosofia que atesta a sua imoralidade e ilegalidade. Vejamos tal argumentação a seguir.
Antes de tudo, é preciso esclarecer qual é o problema central que está em jogo no aborto. Ou seja, é preciso saber o que exatamente há de errado no ato de abortar. Ora, a literatura acadêmica sobre o assunto deixa claro que o problema central é saber o que está sendo morto em um aborto. E aqui as opções são apenas duas: ou o que está sendo morto em um aborto é uma pessoa, ou é alguma outra coisa. Assim, o real problema no aborto é saber qual é o “status moral” do não-nascido (se ele é ou não uma pessoa com dignidade moral e direitos). E aqui é oportuno notar que tanto os críticos do aborto (os ‘pró-vida’) quanto os defensores (os ‘pró-aborto’) concordam com as seguintes premissas básicas: (1) “pessoa” é algo que possui dignidade moral (‘dignidade humana’) e direitos (p. ex., direito à vida); (2) atentar contra tal dignidade e tais direitos é algo imoral e ilegal (isto é, é algo moralmente errado e criminoso). Quero crer que nenhum defensor do aborto teria coragem de negar essas duas premissas básicas e universais. Desse modo, há questões que são consenso entre aqueles dois grupos (os pró-vida e os pró-aborto); e assim, resta que o problema crucial, ou ainda, o objeto real de dissenso, é o conceito de “pessoa”. Em suma, se o que estiver dentro do útero materno for uma pessoa, então mata-lo será obviamente o mesmo que cometer assassinato; mas se o que estiver dentro do útero materno não for uma pessoa, então mata-lo não será o mesmo que cometer assassinato. Esse é, pois, o ponto central na questão do aborto.
Podemos extrair algumas consequências imediatas dessas elucidações. Pois, se o real problema é saber se o não-nascido é ou não uma “pessoa”, então dizer coisas como: “o aborto é fundamentalmente uma questão de saúde pública, pois milhares de mulheres morrem todos os anos por fazerem abortos em condições precárias”, ou “o aborto é fundamentalmente uma questão da liberdade que as mulheres têm sobre o seu corpo”, será simplesmente dizer meias-verdades. Isso porque, argumentos como estes já tomam por certo que o que está no útero das gestantes não é uma pessoa (mas sim uma outra coisa), e isso está longe ser algo “certo” e indiscutível. Na verdade, como mostrarei em seguida, é mais razoável acreditar que o não-nascido é uma pessoa do que acreditar que ele não é. Porém, eu mesmo não posso simplesmente assumir isso como algo “certo” – cabe-me, antes, demonstrar a razoabilidade da minha visão através de argumentos, fatos, evidências, etc.
Mas antes de entrar na discussão do conceito de “pessoa”, é preciso esclarecer o conceito de “vida humana” ou “organismo humano”. Pois um argumento pró-aborto comum é dizer que um não-nascido só se torna uma vida humana em certo estágio do desenvolvimento fetal – em especial, quando o feto começa a desenvolver órgãos vitais e traços físicos mais semelhantes àqueles de um bebê. Antes desse período, diz o argumento, tudo o que temos é um “agregado de células”, e por isso sequer faria sentido discutir o aborto nesse período. Ora, esse argumento é simplesmente falso. E aqui podemos perceber como a ciência da embriologia contribui para o esclarecimento da questão: pois essa ciência nos diz que a vida humana começa na concepção, pois é neste momento que surge um indivíduo singular da espécie homo sapiens (não um mero ‘agregado de células’).
Com efeito, a embriologia nos diz que na concepção ocorre o surgimento de um novo organismo individual e singular, o chamado “embrião”, o qual é distinto das células reprodutivas que o precedem (isto é, do espermatozoide e do óvulo), pois é dotado de um DNA humano próprio (que é o resultado da combinação do DNA do pai com o DNA da mãe) no qual se encontra toda a informação genética necessária para o seu autodesenvolvimento até os estágios mais maduros de sua vida. Ora, se o embrião é um indivíduo orgânico singular, dotado de DNA humano (que o torna, portanto, um membro da espécie homo sapiens), então ele não pode ser identificado com um mero “agregado de células”. Ele possui em si mesmo todo o material genético necessário para se desenvolver enquanto ser humano (pois é evidente que do embrião humano não se desenvolverá um cão ou um gato, mas um ser humano), e um mero “agregado de células” não poderia fazer isso. Consequentemente, podemos aqui refutar mais alguns mitos, por exemplo: que “a ciência não sabe quando começa a vida” (o que, segundo vimos, é falso); ou que “o aborto é legítimo porque a mulher tem direito sobre o seu corpo” (o que também é falso, já que o embrião é um organismo geneticamente singular e autodirigido, distinto do organismo materno que o envolve).
Existe, portanto, uma continuidade biológica entre o embrião e o ser humano adulto. Em verdade, nós, seres humanos, passamos por muitas fases distintas ao longo da nossa vida. Em nosso estágio mais primitivo de desenvolvimento, somos minúsculos embriões; em seguida nos tornamos fetos (seres ainda muito frágeis e não completamente desenvolvidos); posteriormente, tornamo-nos recém-nascidos (momento em que ainda somos subdesenvolvidos em muitas características humanas, pois não andamos, não falamos, etc.); entramos, então, na infância; depois, na vida adulta; e, por fim, na velhice (cujo término se dá com a morte). Ora, há claramente uma continuidade biológica em todo esse trajeto complexo e multifacetado. Mudamos muito ao longo da vida (tanto fisicamente quanto psicologicamente), mas o nosso DNA e a nossa espécie permanecem os mesmos. Assim sendo, não restam dúvidas: biologicamente falando, somos os mesmos desde a concepção: indivíduos humanos.
Resta saber quando exatamente esses indivíduos humanos tornam-se pessoas. Esta é uma questão filosófica, e sabemos que questões desse tipo são potencialmente insolúveis. Logo, não podemos esperar respostas “finais” aqui. Devemos apenas buscar pelas respostas mais “razoáveis”, que apresentam melhores razões, argumentos, evidências, etc. Com isso em mente, consideremos a seguir as principais respostas para o problema da “pessoalidade” do não-nascido.
Um argumento comum entre defensores do aborto é que o feto só se torna uma pessoa quando adquire “senciência”, isto é, capacidade de sentir prazer e dor (o que ocorre mais ou menos na vigésima semana da gestação). Assim, até esse período não seria errado abortar, pois o feto ainda não teria senciência e, portanto, não seria ainda uma pessoa. Porém, esse argumento é arbitrário e conduz a consequências atrozes. É arbitrário porque, apesar de a senciência ser algo central na vida humana, ela não é de modo algum aquilo que nos torna pessoa. Se esse fosse o critério, então as pessoas que sofrem de uma síndrome rara que as impede de sentir dor (a chamada ‘Síndrome de Riley-Day’) não seriam pessoas. Pessoas em estado vegetativo e totalmente privadas de senciência também não seriam pessoas. Ora, é evidente que ambos os tipos de pessoas mencionadas, apesar de suas debilidades, são verdadeiramente pessoas humanas. Portanto, estabelecer a senciência como o critério de pessoalidade é simplesmente arbitrário. Mas também é algo atroz, pois habilita uma lógica de instrumentalização de pessoas reais – pois, se os tipos de pessoas mencionadas acima não são realmente pessoas, por que então não poderíamos exterminá-las ou usá-las como objetos para os nossos fins? Foi exatamente isso que os escravagistas e nazistas fizeram quando simplesmente decidiram que certas pessoas não eram “pessoas” de verdade.
Há ainda posições mais absurdas, como as que dizem que só é “pessoa” quem tem expectativas saudáveis/funcionais de vida (alguns proponentes desse argumento concluem que pessoas com Síndrome de Down poderiam ser abortadas em qualquer estágio da gestação), ou as que dizem que “pessoa” é apenas a criança que já nasceu (o que habilitaria o aborto mesmo minutos antes do nascimento da criança!). Mas consideremos apenas o argumento da senciência como um argumento sério aqui. Todo modo, como vimos, tal argumento, apesar de parecer menos perverso, não é menos problemático do que os demais (pois implica a desconsideração, e mesmo instrumentalização, de pessoas reais). Pois bem, a única maneira plausível de superar os problemas que tal argumento gera, é estabelecendo-se a concepção como o marco inicial da pessoalidade humana.
Sabemos que é na concepção que surge um organismo geneticamente singular e autodirigido, que é um membro da espécie homo sapiens. Porém, como decidir o exato momento em que esse organismo se torna também um ser digno e portador de direitos? Parece que qualquer ponto que venhamos a estabelecer após a concepção, será arbitrário e gerador de injustiças. Frente a essa dificuldade, a alternativa mais razoável que se apresenta, é afirmar que na concepção surge tanto o ser humano quanto a pessoa humana, e que, portanto, esses dois conceitos são indissociáveis. Com isso, evitamos a arbitrariedade (afinal, a continuidade biológica entre o embrião e o ser humano adulto é inegável), e também evitamos as consequências nefastas, pois nenhuma pessoa seria excluída ou atacada em sua dignidade e direitos (p.ex., pessoas com Síndrome de RileyDay, pessoas com Síndrome de Down, pessoas em estado vegetativo, etc.).
Uma objeção a essa tese seria que ela é muito estranha, que destoa demais da visão comum que temos do conceito de “pessoa” (o qual inclui certas características sociais e psicológicas, p. ex.: senciência, capacidade de pensamento e comunicação, traços físicos comuns, etc.). Mas é fácil dar uma resposta a essa objeção: o ponto é que a concepção comum de pessoa não é científica e nem filosófica, mas social e psicológica, e por isso não é adequada para o caso do aborto. Ela é útil para orientar a vida cotidiana (p. ex., a través dela poderíamos tentar distinguir entre uma pessoa real e um robô). Mas, fora do contexto ordinário tal concepção se torna insuficiente. Seja como for, deve-se reconhecer que dar o título de pessoa a um embrião recém-concebido é, de fato, algo estranho à primeira vista.
Entretanto, na vida e na natureza muitas coisas são estranhas à primeira vista: tente entender a mecânica quântica, por exemplo, e então você verá o que é estranheza. Nem tudo é o que parece, e nem tudo é como gostaríamos que fosse. Ora, um dos fatos estranhos que o nosso mundo nos revela é este: que “pessoa” é algo aplicável tanto a um embrião recém-concebido quanto a um feto de dois meses ou a recém-nascido. Ao menos essa parece ser a concepção de pessoa que mais faz justiça aos fatos da embriologia e às particularidades do mundo real (no qual encontramos diversos tipos de pessoas, umas mais ‘funcionais’ e saudáveis, outras menos – mas todas ainda pessoas!). Enfim, se essa concepção de pessoa for, de fato, a mais razoável, e portanto aquela digna de ser considerada verdadeira, então deveremos arcar com todas as consequências que ela traz – entre as quais está a não permissibilidade moral e legal do aborto. Como tentei demonstrar aqui, as razões, os fatos e evidências da embriologia e da filosofia moral parecem apontar nessa direção.
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